Um pastor diferente?


Ser chamado pelo nome é ser reconhecido. Por isso Jesus, o Bom Pastor, chama cada um por seu nome, convidando-nos a confiar nele, a passar através dele, a escutá-lo, a seguir o seu exemplo e a viver com ele a sua Páscoa, a fim de conhecer a Vida.

A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras desse 4º Domingo do Tempo de Páscoa (26/04/15). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara, publicado no IHU.

Eis o texto.


Um pastor, mas não como os outros

A figura do pastor representa o que, para os homens da Bíblia? Os chefes religiosos, claro, mas também os chefes políticos. Política e religião estão assim estreitamente ligadas. O «pastor» é o que governa e conduz a todos por bons caminhos. É a autoridade exercida com vistas ao bem comum. Tendo dito isto, devemos notar que o pastor vive do seu rebanho. Explora-o e tira dele o seu lucro. Sabemos o que acontece com os criadores quando o leite não alcança preço favorável. Há uma dependência mútua, portanto, mas o objetivo do pastor não é o seu rebanho e sim ele mesmo. Tanto que vemos criadores passarem de uma espécie a outra, quando a rentabilidade está em jogo. Além do mais, este pastor de que fala Jesus não é nem mesmo o proprietário do rebanho, mas um «mercenário», pago para se ocupar das ovelhas. O que coloca uma distância suplementar entre ele e os animais dos quais se ocupa. É preciso observar, enfim, que, no evangelho, o pastor está no singular: é único, para um rebanho de múltiplos animais. Cada um destes traços tem a sua importância, e veremos como o Cristo, quando fala do «bom pastor», modifica-os até invertê-los. Isto nos leva a mudar a nossa maneira de ver Deus: à força de utilizarmos a metáfora real (Deus como Rei dos reis, Cristo-Rei, etc.), acaba que representamos Deus como sendo um patrão autoritário e até mesmo arbitrário; um soberano que nos quer manipuláveis a seu «bel prazer». Um ‘Deus’ que tem algo a ver com os maus pastores de que fala Ezequiel 34, texto que serve de pano de fundo ao evangelho de hoje e que faríamos muito bem em reler.

Cada um por si e todos em conjunto

Não apreciamos muito ser comparados a um rebanho. Há aí um lado gregário que parece nos fazer
desaparecer no anonimato e, ainda mais, tendo ovelhas que se atiram ao mar uma atrás das outras - como o pano de fundo. Jesus, no entanto, inverte esta imagem: o bom pastor conhece cada uma das suas ovelhas e as chama cada uma pelo nome (versículo 3, fora da leitura). Para ele cada ovelha não constitui um objeto substituível, mas uma personalidade singular. Por isso não abandona a ovelha que está ferida, doente ou que se tenha perdido (ver Ezequiel 34,16 e Lucas 15,4-7), quer se trate de um problema físico, mental ou moral. Para o Deus Uno cada um de nós é único e ninguém deve se perder. Mas, então, por que falar em rebanho (cf. o Salmo 95,7 entre outros)? Porque tudo o que somos, tudo o que se constitui como particularidade nossa deve ser depositado no fundo comum para construir um só corpo, à imagem do Deus que é União (Trindade). Aqui, o uno e o múltiplo reconciliam-se, como explica Paulo em 1 Coríntios 12. Assim, o rebanho de que fala a Bíblia não é um rebanho como os outros, em que todos os animais são intercambiáveis. Resulta daí que a autoridade do Bom Pastor, ou do próprio Deus, não tem nada a ver com o que costumamos tomar como o conteúdo desta palavra. Trata-se de uma autoridade que funda e que faz crer, é a autoridade de um «autor», do «autor dos meus dias». Sabemos, por outro lado, que a meta do exercício desta autoridade é a nossa liberdade, para além das limitações que a «natureza» e a vida nos impõem.

O pastor que dá a sua vida

Este «bom pastor», decididamente, não tem nada a ver com os pastores comuns. Os pastores vivem do seu rebanho, enquanto, ao contrário, o Cristo está falando de um pastor que não é outro senão ele mesmo, que dá a sua vida por suas ovelhas. São palavras que fazem alusão à Páscoa que estava por vir. Jesus, um dia, dirá aos discípulos: «Tomai e comei, esta é a minha carne que será entregue por vós… Tomai e bebei; este é o meu sangue que será derramado por vós.» Já no capítulo 6 do evangelho de João, lemos: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna [...…] e permanece em mim e eu nele…» (54-56). Não é mais o rebanho que alimenta o pastor, mas é o pastor que, com a sua própria carne, alimenta o rebanho. Aliás, tudo o que consumimos não é um alimento de verdade, porque só nos proporciona um sursis à morte, a sua suspensão temporária. Pois, a Eucaristia significa tudo isto. Faz de nós um só «rebanho» certamente, um só corpo, mas repartir, tomar e comer deste pão só pode produzir fruto, se absorvemos também a sua Palavra. Qual palavra? Em 1 João 3,24, lemos que “quem guarda os seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele” (são as mesmas palavras do capítulo 6). E o mandamento do Cristo é que nos amemos uns aos outros, «não com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade». Deveríamos nós também nos dar em alimento para os nossos irmãos? Pois é isto mesmo que está dito em 1 João 3,16.


Referências bíblicas:
1ª leitura: «Em nenhum outro há salvação» (Atos 4,8-12)
Salmo: 117(118) - R/ A pedra que os pedreiros rejeitaram tornou-se agora a pedra angular.
2ª leitura: «Seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é» (1 João 3,1-2)
Evangelho: «O bom pastor dá a vida por suas ovelhas» (João 10,11-18)

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