Tomai e comei, isto é o meu corpo

Neste domingo, festa da Assunção, finalmente pude voltar à missa presencial aqui na minha paróquia de Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado. Foram exatos 5 meses de ausência desde quando estive lá pela última vez às vésperas do decreto de fechamento do comércio, parques e templos cariocas por conta do agravamento da pandemia de Covid-19.

Nesse tempo de igrejas fechadas, uma total novidade para a maioria de nós neste Ocidente quase pós cristão, os sacerdotes até tentaram abrandar os impactos do isolamento social transmitindo missas pelo Youtube ou Instagram, mas longe fisicamente das celebrações acabamos todos condicionados a um longo período de jejum eucarístico que, embora excessivo, pode nos fazer refletir sobre os profundos significados da mesa da comunhão para o povo de Deus.

Períodos sem Eucaristia não são inéditos na história da Igreja, existiram no passado como no Japão do século XVII ou na Albânia dos anos 70 e 80 do século passado, onde o povo permaneceu fiel quando seus bispos e padres foram perseguidos e expulsos por governos autoritários. Também existem no presente, para as comunidades da Amazônia, por exemplo, onde a falta de padres é cada vez mais aguda e as soluções propostas pelo Sínodo de 2019 seguem engavetadas, inexplicavelmente.

Como em todo tempo de jejum, há sofrimento e desconforto, mas não precisa ser necessariamente assim. Por certo que a Eucaristia é centro e clímax da vida cristã, sacramento vivo da presença de Jesus, por Ele próprio conferido como memória de seu sacrifício e como alimento para nossa caminhada. Mas nós, católicos latinos, estamos acostumados desde há muitos séculos a pensá-la como algo externo ao qual assistimos ou obtemos, enquanto seu real significado é algo que nós, todo o povo de Deus, fazemos juntos. Assim, esse afastamento da Mesa da Comunhão deve ser o início de uma reflexão sobre o porquê, em tempos normais, queremos negar o Pão da Vida a alguns de nossos irmãos.

A prática de negar a Comunhão é usada frequentemente como arma por católicos conservadores, ordenados ou não, contra pessoas que eles julgam pecadoras. Geralmente só vale para os ditos pecados morais, como os divorciados recasados, os defensores da descriminalização do aborto, e obviamente as pessoas LGBT+. Não se tem notícia de comunhão negada a quem defenda o lobby das armas ou quem explore os seus empregados, porque infelizmente a visão dominante neste grupo é de uma Igreja alfândega da moral sexual.

As pessoas LGBT+ tem sido por muito tempo as vítimas preferenciais dessa cruzada moderna, que insiste numa visão de mundo e de Igreja segregacionistas como se ainda vivêssemos os tempos do deuteronômio. Há inúmeros relatos no Brasil e no mundo de pessoas LGBT+ que foram afastados de seus ministérios como catequistas, leitores, e músicos quando assumiram publicamente sua orientação sexual ou identidade de gênero. Há também casos de batismo negado aos filhos de casais LGBT+, como antes se negava (e ainda se nega) aos filhos das mães solo. E claro, existem as pregações raivosas que usam a fantasiosa “ideologia de gênero” para atacar as pessoas LGBT+.

Por vezes, também ficamos sabendo de um padre que oficialmente tenha negado a hóstia a uma pessoa LGBT+, isso causa um pequeno furor e acaba noticiado em alguns poucos meios de comunicação. Mas ainda que essas manchetes não sejam tão recorrentes, é preciso considerar que com a constante pregação nos tratando como pecadores desordenados nem é preciso que um padre nos negue a comunhão, pois muitos de nós sequer considera se aproximar da mesa eucarística depois de uma homília que nos desumaniza. Neste cenário é fácil compreender que, embora o Catecismo oriente o acolhimento sem preconceitos das pessoas LGBT+, na prática a Igreja tem nos imposto um dos mais longos jejuns eucarísticos de que se tem notícia.

Contudo, quem age assim não está de acordo com Jesus. Antes, está agindo como os fariseus do Sinédrio. Jesus Cristo sempre se aproximou das pessoas, de todas elas, e por isso mesmo era criticado por andar com gente de má fama. O Papa Francisco escreveu na Evagelii Gaudium que a Eucaristia não deve ser encarada como um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos. Portanto, essa régua moralista é sinal de um persistente farisaísmo católico que equivale a um catolicismo não cristão, onde se presta culto a Deus, mas não se segue o ensinamento de Jesus.

Em breve, os templos reabrirão em toda parte. Aqui no Rio as missas presenciais já voltaram, com lugares reservados por aplicativo. Porém, a reabertura das igrejas será de pouca utilidade se não abrimos também nosso coração, deixando de lado todo e qualquer moralismo hipócrita que nos faz apontar um cisco no olho do irmão e ignorar a trave que está no nosso. Como cristãos, não somos juízes de ninguém e jamais deveríamos considerar afastar direta ou indiretamente alguém da Eucaristia.

Nós pessoas LGBT+ não somos a princípio mais ou menos pecadores que ninguém, mas assim como Zaqueu, estamos tentando ver Jesus e há sempre uma multidão nos impedindo. No relato do evangelho, Jesus fura o bloqueio e vai ao encontro de Zaqueu, fazendo a multidão que o acompanhava resmungar em reprovação. Assim como aquela multidão, você também pode resmungar quando encontrar a mim ou outra pessoa LGBT+ na fila da hóstia, mas você também pode se reconhecer igualmente como pecador e aceitar que na graça de Deus somos irmãos. Isso é comunhão!

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