Deus criou o homem à sua imagem... criou o homem e a mulher. (Gn 1,27)

Cristianismo e Sexismo, motivações para violência machista


8 de março é o “Dia Internacional da Mulher”, mas a data não existe para que as presenteemos com flores, ressaltando sua delicadeza e sensibilidade. Este dia existe para lembrarmos a incessante luta das mulheres pela igualdade e denunciar as enormes agressões infligidas às elas por uma sociedade fortemente sexista. E é possível encontrar exemplos dessa violência em todas as culturas, mesmo naquelas ditas mais avançadas.

No mundo judaico-cristão, apesar dos inegáveis avanços obtidos, a tradição patriarcal ainda é um desafio para a plena igualdade entre homens e mulheres, e neste contexto, os textos bíblicos são frequentemente usados como apoio e inspiração à manutenção e ao aprofundamento da assimetria nas relações entre os gêneros. Do Antigo ao Novo Testamento são muitos os casos onde a mulher é vista de uma perspectiva negativa, como a sedutora Eva que conduziu Adão ao erro (Gn 3), a perigosa Dalila que sorrateiramente traiu Sanção (Jz 16), ou a mesquinha Salomé que por capricho exigiu a cabeça de João Batista (Mt 14). Além disso, a manipulação destes textos, feita quase que exclusivamente por homens e para homens, foi uma ferramenta poderosa para que as lideranças masculinas mantivessem as mulheres em um lugar de submissão.

Mas é preciso revisitar essas antigas tradições e certezas à luz dos ensinamentos de Jesus Cristo para descobrir as armadilhas mundanas que turvam nossa visão e transformam os textos sagrados em mensagens de violência e exclusão. É ainda preciso ler a Bíblia em seu todo, sempre considerando os contextos históricos, e nunca utilizando versículos soltos, pois somente com a imagem ampla da criação-queda-redenção é que podemos mais fielmente entender o que o cânon bíblico nos mostra. Porque em verdade vos digo: “A igualdade de gêneros é bíblica e focada no reino de Deus”.

Apesar da impressão de que é um livro muito negativo em relação ao gênero feminino, uma pesquisa feita na Inglaterra pela Sociedade Bíblica mostra que a maioria das mulheres das Escrituras recebe avaliações positivas como “abençoada”, “justa”, “admirável” e – é claro – “bonita”. Essas descrições aparecem em 60 das 175 personagens femininas, enquanto que apenas 13 mulheres recebem descrições negativas, e as demais neutras como “mãe de” ou “irmã de”. E apesar do destaque dado as Dalilas e Jezebéis, encontramos em muitas das histórias um time importante de heroínas, o que nos leva a uma compreensão de que a visão sexista da Bíblia é muito mais devida a um erro de interpretação motivado pelo preconceito e não tanto pelos textos em si.

Ainda no Jardim do Éden, por exemplo, no primeiro capítulo do Gênesis, o texto bíblico é bastante claro ao dizer que “Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher.” (Gn 1,27). Ou seja, homens e mulheres são criados igualmente à imagem de Deus, sem qualquer hierarquia, e ao contrário da tradição, Eva não foi criada como uma assistente do homem. Inclusive a palavra hebraica ‘ezer’ usada para descrevê-la em Gn 2,18 e que traduzimos como ‘ajudante’ significa ajuda ou socorro, e inclusive é a mesma palavra usada para descrever o próprio Deus como nosso socorro em muitos dos salmos (121,2; 124,8; 146,5). Não há, portanto, na descrição primordial da mulher qualquer sentido de inferioridade, ainda mais quando vemos mais adiante que em Gn 3, 1-5, a serpente fala com Eva e usa com ela as formas verbais no plural, tratando-a como porta-voz do casal humano – um padrão improvável para uma cultura patriarcal.

Já no tempo dos Juízes, uma mulher chamada Débora tornou-se líder de Israel. Ela é a única mulher na Bíblia que não apenas governou o povo judeu como também deu ordens militares a um homem, Barac (Jz 4,6). As Escrituras dizem que Débora era uma profetisa, Deus lhe falava e ela transmitia Sua Palavra ao povo. Ela era também uma juíza, portanto, julgava as pessoas que vinham até ela para resolver suas contendas. E naturalmente, ela também era esposa e mãe. Não há nenhuma incompatibilidade entre a maternidade e as funções de liderança, nem é imposto a Débora nenhuma renúncia às suas características femininas para que assuma o comando de Israel. Também outras mulheres são exemplos de força e admiração, como Sara a quem Deus abençoou como mãe de reis e das nações (Gn 17, 16), ou a rainha Ester que corajosamente salvou o povo judeu das garras de Hamã, originando a festa de Purim celebrada até hoje nos meses de fevereiro ou março.

Mas é o próprio Jesus Cristo que inaugura uma atitude verdadeiramente libertária para com as mulheres e restabelece a igualdade original criada por Deus, rompendo com a antiga marginalização vista em tantas passagens como “foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos” (Ec 25,24). E é no Evangelho de Lucas, há tempos citado como o ‘evangelho das mulheres’, que essa nova atitude fica mais evidente, como quando a mulher Cananéia aparece como testemunha exemplar na vivência da Palavra de Deus, tanto que “Jesus disse-lhe: Minha filha, tua fé te salvou; vai em paz” (Lc 8,48). Já no servir e cooperar, as mulheres inauguraram um discipulado criativo, pois enquanto Jesus andava por cidades e povoados anunciando a Boa-Nova, era acompanhado tanto pelos 12 apóstolos como por algumas mulheres que o serviam com seus bens (Lc 8,1-3). E por fim, na morte de Jesus, são as mulheres as primeiras testemunhas da Ressurreição (Lc 24,1), mas diferentemente do Senhor, os discípulos recusaram o testemunho delas.

Portanto, na obra redentora de Cristo, “ambos (homens e mulheres) são igualmente perdoados por meio da cruz, igualmente transformados pelo Espírito Santo, igualmente parte da comunidade dos filhos de Deus”. Jesus elevou a dignidade das mulheres, Ele teve amigas íntimas, numa época em que não era permitido falar com mulheres em público, como quando restaurou a dignidade da mulher samaritana e relevou-se a ela como Messias (Jo 4).

Existem textos sobre mulheres na Bíblia que podem apresentar problemas, mas nós cristãos devemos entendê-los a partir de contextos adequados, sempre recordando das palavras de São Paulo no livro de Gálatas 3, 26-28: “... porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus.”

Por isso devemos combater toda forma de preconceito, sobretudo o sexismo que deturpa a visão da realidade com a criação de estereótipos e o fomento da violência machista e homofóbica. As Sagradas Escrituras são lâmpadas para os nossos pés (Sl 118, 105) e devem iluminar nossos passos na caminhada-construção do Reino de Deus. Delas não advém qualquer impulso para o mal, ao contrário, é da Bíblia que vem a certeza de que somos todas e todos, em Cristo, filhos igualmente amados do Deus que é Amor (Jo 1,12).

Meu respeito e minhas congratulações a todas as mulheres neste dia à elas dedicado.

Lucas Paiva, em 08 de março de 2015.

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