Sínodo sobre a Família 2015 - Uniões homossexuais: Rejeição? Misericórdia? Reconhecimento?

Outro nível de “novas palavras” esperadas refere-se diretamente ao julgamento das uniões homossexuais. É possível dizer algo mais do que se disse? É ilusório pensá-lo? As próximas páginas têm como objetivo apresentar o que se disse até hoje e, sobretudo, o que se “poderia” esperar que se dissesse.

O texto a seguir é de Pablo Romero Buccicardi, SJ, e foi publicado na Revista Mensaje, em Junho 2015, abordando os diversos desafios do Sínodo sobre as Famílias quanto as questões dos homossexuais. A tradução é de Aníbal Liberal Neves, membro do grupo português Rumos Novos - Homossexuais Católicos.


Encontramo-nos no meio do Sínodo sobre a família. Em outubro do ano passado realizou-se uma primeira assembléia e ao terminar fizeram-se públicas as suas conclusões no “Relatio Synodi”. A reflexão continuará pelo menos até à assembléia de outubro de 2015 e, pelo mesmo, como disse o porta-voz da Santa Sé, “é importante não analisar em excesso o texto”. De todas as maneiras, fica a marca dos debates, do documento e das votações ineditamente publicadas. Especialmente estas últimas mostram uma notória falta de consenso, entre outros assuntos, em como abordar a pastoral com pessoas homossexuais (1). O texto conclusivo não respondeu às expectativas daqueles que esperavam “novas palavras”, já o afirmei a propósito e, assim, não é arriscado pensar que com isto tenha que ver o terço dos bispos que não se reviu na redação dos números a ela dedicados.



Que “novas palavras” se poderiam esperar, com maior ou menor realismo, por parte do Magistério da Igreja relativamente à vida das pessoas homossexuais? Creio que estas se poderiam situar em dois níveis. O primeiro é o da atitude. Para muitos, esperam-se palavras que consigam expressar da melhor forma o devido “respeito, compaixão e delicadeza” que o mesmo Magistério proclama no Catecismo da Igreja Católica (CIC) de 1992 (n° 2.357). Alguns anseiam afirmações que ninguém poderia discutir doutrinalmente e que têm esta qualidade: “Os homossexuais são bem-vindos na Igreja”, “queremos escutá-los”, “eles não devem sentir vergonha pelo que são”, “sabemos do sofrimento quando os estigmatizam negativamente”, “eles têm muitos dons que entregar”. Várias destas expressões, sabemos de fato que foram discutidas e nenhuma chegou a estar presente no texto final. Estas fariam muito bem. Além disso, alguns, nesta linha, sonhamos com que a Igreja peça perdão. Aqui houve negligência pastoral e cumplicidade em vivências da homossexualidade tingidas de obscuridade e sofrimento. E, por último, espera-se que se realize para aqueles que, mesmo no meio da hostilidade, permaneceram fiéis à Igreja e procurando o seu crescimento. Deles, todos temos a aprender.

Outro nível de “novas palavras” esperadas refere-se diretamente ao julgamento das uniões homossexuais. É possível dizer algo mais do que se disse? É ilusório pensá-lo? As próximas páginas têm como objetivo apresentar o que se disse até hoje e, sobretudo, o que se “poderia” esperar que se dissesse.


O que foi afirmado até hoje: A rejeição do Magistério

Creio que o que é dito pelo Magistério à volta daquilo a que se chama “atos” homossexuais é conhecido por muitos. E é-o tanto pela sua claridade como pela insistência em ser expresso utilizando praticamente as mesmas palavras em cada documento dos últimos quarenta anos. Isto pode-se dividir: num juízo do ato, numa justificação principal, noutras justificações relevantes e num juízo da culpabilidade. De seguida, apresento uma breve síntese de tudo isto à maneira, provavelmente, de uma lembrança:

a) O juízo do ato homossexual

Nunca se expressou uma dúvida num documento do Magistério que “(o ato homossexual) não pode receber aprovação em nenhum caso” (CIC, n° 2.357). A primeira vez que se assinalou nesses termos foi na declaração da Congregação da Doutrina da Fé (CDF) de 1975 “Persona humana”, no seu n° 8. E neste texto se acrescenta: “Não se pode empregar nenhum método pastoral que reconheça uma justificação moral a estes atos”. A segunda vez foi na “Carta sobre a atenção pastoral para com as pessoas homossexuais” da mesma congregação. Desta vez, no ano 1986, repete a primeira fórmula e especifica no seu n° 15 que “nenhum programa pastoral autêntico poderá incluir organizações onde se associem entre si pessoas homossexuais, sem que se estabeleça claramente que a atividade homossexual é imoral”. No ano 2003, por último, num contexto de discussão sobre reconhecimento civil, a CDF reiterou esse juízo.

b) A justificação principal

Poder-se-ia dizer que a principal justificação utilizada para a rejeição foi a seguinte: segundo a ordem moral objetiva, estas relações são “atos privados da sua ordenação necessária e essencial”, ou são, “pela sua intrínseca natureza, desordenados” (CDF, 1976, n° 8). Qual seria essa ordem transgredida? O ato sexual estaria orientado, por natureza, para a procriação e exige, pelo mesmo, complementaridade. A atividade homossexual, pelo contrário, “não expressa uma união complementar capaz de transmitir a vida e, portanto, contradiz a vocação a uma existência vivida nessa forma de autodoação que, segundo o Evangelho, é a própria essência da vida cristã” (CDF, 1986, n°7). Ou seja, o argumento do Magistério é o mesmo utilizado para rejeitar todas as relações sexuais não abertas à procriação, ainda que aqui agrava o seu juízo porque o ato é incapaz de fazê-lo.

c) A justificação da continuidade com a tradição e as Escrituras

O Magistério ressaltou o facto de que a mesma rejeição pode-se encontrar ao longo da tradição da Igreja e está em perfeita continuidade com as Escrituras. Mesmo quando se reconhece, especialmente no que se refere a estas últimas, que a Igreja de hoje proclama o Evangelho a um mundo muito diferente do antigo, “existe uma evidente coerência dentro das mesmas Escrituras sobre o comportamento homossexual” (CDF, 1986, n° 5). Não se tratariam, portanto, de frases isoladas das escrituras tiradas fora do seu contexto (assunto defendido por uma parte importante dos teólogos bíblicos), mas de uma coerência no juízo presente em diversas passagens do Antigo e Novo Testamento e que funda as suas raízes na mesma teologia da criação do Gênesis: “Os seres humanos, por conseguinte, são criaturas de Deus, chamados a refletir, na complementaridade dos sexos, a unidade interna do Criador. Eles realizam esta tarefa de maneira singular, quando cooperam com Ele na transmissão da vida, mediante a recíproca doação esponsal” (CDF, 1986, n° 6). Além do mais, insistiu em que esse mesmo juízo se encontra em muitos escritos eclesiásticos dos primeiros séculos e “foi unanimemente aceito pela Tradição católica” (CDF, 2003, n° 4).

d) O juízo sobre a culpabilidade

Se o juízo objetivo sobre o ato homossexual parece claro, o que há sobre a culpabilidade pessoal? Na declaração de 1975 da CDF distingue-se entre o ato homossexual objetivamente contrário à moral e à culpabilidade da pessoa. Esta última, diz, deve ser “julgada com prudência” (CDF, 1975, n° 8), embora, como já se assinalou, não se devem empregar métodos pastorais que reconheçam uma justificação moral. Na carta de 1986 aprofunda a este respeito, mas pondo ênfase no que diz respeito à não justificação moral. Perante uma posição justificadora que argumenta uma falta de liberdade e alternativas por parte da pessoa homossexual, a CDF defende duas coisas no n° 11: o não generalizar a partir de casos particulares – estes últimos podem tanto reduzir como aumentar a culpabilidade – e o evitar a presunção “infundada e humilhante” da falta de liberdade.

Como se vê, o tom em que está formulado o juízo do Magistério dá pouco espaço à interpretação. Mesmo quando em alguma declaração se reconhece que a culpabilidade deve julgar-se com prudência, a ênfase está posta em que estas uniões não se podem justificar moralmente em caso nenhum.


A misericórdia ou a união homossexual como “mal menor”


Quando se pensa em “novas palavras” em nível doutrinário, alguns pensam que o chamamento a um “juízo prudente” sobre a culpabilidade pessoal deve abrir passo a uma mais decidida expressão de misericórdia para aquelas pessoas homossexuais que se uniram em relações de noivado e coabitação.

Este apelo à “misericórdia” funda as suas raízes na experiência do conhecimento do sofrimento de pessoas homossexuais no seu itinerário de vida. Este último está marcado muitas vezes por:

  • uma orientação sexual que se foi descobrindo desde cedo, não sendo escolhida, nem buscada;
  • um contexto social hostil à homossexualidade com escárnio, depreciações e mesmo exclusão laboral e maltrato físico a quem fosse suspeito de ser homossexual ou assim se revelasse;
  • um contexto eclesial onde se replicou a estigmatização - insistindo em que a orientação era uma “enfermidade”; o maltrato, através de discursos pejorativos; e a exclusão, para aqueles que tornassem pública a sua orientação, e mais ainda para quem decidira vivê-la. Isto trazia consigo dois “pesos” agregados: a carga religiosa do “pecaminoso” e a autoridade de quem o dizia;
  • um contexto familiar onde se podiam replicar as mesmas dinâmicas, com o sofrimento acrescentado para a criança-jovem-adulto homossexual de não querer provocar uma dor naqueles a quem amava;
  • uma vivência homossexual, que nos contextos anteriores, teve o peso da luta contra si mesmo, a solidão, a vida dupla e o risco;

Muitos daqueles que pedem mais “misericórdia” têm presente histórias como estas ou ainda mais dramáticas, como as daqueles adolescentes que terminaram suicidando-se. Daqui surge uma sã compaixão que diz “basta de tanto sofrimento injusto”!

Por outra parte, ao olhar o futuro exigido pelo Magistério para todo homossexual, como é o do celibato, muitas pessoas também o reconhecem como uma carga indevida e uma oferta de caminho irreal, pelo menos para todos. Mesmo valorizando o celibato como vocação, este exige estruturas de apoio para ser vivido sã e fecundamente. Estruturas que não proveem nem a sociedade nem a Igreja para o homossexual. Além disso, a vivência do celibato supõe um ponto de referência que não é universal. Exigir celibato para todos parece desproporcionado e exclui uma boa parte dos homossexuais da comunidade eclesial. Contemplando Jesus, que procurou a inclusão daqueles marginalizados do seu tempo, muitos não podem ficar em paz com a rejeição do Magistério a todas as uniões homossexuais.

Que significa, então, o pedido de “misericórdia”? Além de “novas palavras” que expressem uma nova atitude, como dissemos no início, trata-se da esperança que a nível doutrinal se proclame que “nem toda a união homossexual é condenada e injustificável do ponto de vista moral”.

É isto irreal a curto ou médio prazo, tendo em conta as declarações das últimas décadas? Não o sabemos. Algo assim, evidentemente, contradiria várias formulações da CDF. E isto faz com que seja algo difícil que suceda em breve. Mas não é impensável uma mudança de postura, invocando outros princípios de juízo moral que têm larga tradição na Igreja, muito mais que as assinaladas nestas declarações. Recordo pelo menos três que estão interligadas:

I - A doutrina do mal menor. Pode-se continuar acreditando que toda a união homossexual é algo não credível em si mesmo. Mas se a alternativa é um mal superior e invencível, como poderia ser una vida sexual desumanizante, ou uma solidão não suportável psicologicamente, certa união homossexual, especialmente monogâmica, poderia tolerar-se como um “mal menor” e não sofrer condenação. De fato, na declaração da CDF que fala sobre a culpabilidade subjetiva escapa algo como o anterior, fazendo alusão à “impossibilidade de viver a vida celibatária”. O que acontece é que pede-se para não “generalizar os casos particulares”. A questão aqui seria ver se efetivamente estamos falando de casos muito particulares e não de situação geral.
II - O lugar da consciência. A anterior questão sobre os dois males em jogo, vista agora a partir da pessoa homossexual que julga o seu melhor que fazer, leva-nos à valorização da sua própria consciência. De novo, mesmo quando este possa reconhecer que a vida homossexual ativa não é a ideal, a própria consciência não poderia levá-lo a assumir estas relações sob certas condições? Não estaria com isto a fazer-se responsável da sua própria vida e do chamamento à procura do bem e da sua verdade? Recordemos que o Concilio Vaticano II na sua constituição pastoral Gaudium et Spes reivindica o lugar privilegiado da consciência pessoal na procura da verdade (n° 16) inclusive para a própria dignidade da pessoa (n°17).
III - Heroísmo não exigível. Por último, a doutrina do mal menor entronca-se com outra chave de juízo moral que tem larga tradição. Suponhamos que efetivamente o julgamento entre estes dois males objetivos pode levar à conclusão de que é possível uma vida celibatária, mas com um custo humano muito grande. O Magistério em resposta poderia incentivar o valor do celibato para o homossexual, mas exigi-lo para todos como a única resposta moral justificada? Não será para muitos uma verdadeira vida heroica e, ainda que desejável, não exigível?

Uma postura “misericordiosa” que se pode pedir ao Magistério eclesial poderia ir nesta linha e, como apontamos, está ligada com questões defendidas pela tradição da Igreja. Além disso, talvez na hora das formulações futuras, bastaria um enfoque distinto que ressaltasse o que a CDF de 76 assinalou, mas protegeu-se ao proclamar publicamente para não generalizar: a relativização da culpa subjetiva. A misericórdia não implica passar por cima de um mal realizado, mas acolher a fragilidade humana. Tem que ver com que “não podemos tudo”, e que a moral se joga “dentro do possível”. A compaixão que acompanha esta misericórdia não tem que ver com um olhar pelo menos a um certo grupo humano ou uma menor valorização da sua liberdade. A compaixão é a conexão com pessoas concretas e histórias sagradas que merecem um tratamento único, mais ainda se muitas delas foram marcadas pelo sofrimento. As últimas intervenções do papado e a reflexão de moralistas e pastores, estas últimas décadas, que vão nesta linha fazem com que não seja ilusório pensar nestas “novas palavras”.


A esperança no reconhecimento do amor homossexual

Tudo o que foi dito anteriormente, ainda que necessário e bem-vindo, resulta insuficiente para una ampla maioria de mulheres e homens homossexuais católicos e não católicos. Mais ainda para aqueles que acabaram aceitando a sua orientação sexual com orgulho como parte da sua identidade e do que estão convidados a partilhar. A luta pública, mas antes no interior da mesma pessoa, foi justamente a de não conceber a sua orientação como uma desordem, que deveria ser reprimida, sublimada ou no melhor dos casos “tolerada”, mas como um dos modos de sentir que a constitui em quanto tal. Não estamos falando aqui de uma característica secundária de uma pessoa, da que é indiferente um julgamento valorativo sobre ela. Na orientação sexual expressam-se desejos de acompanhar e ser acompanhado, de ser contido e conter, assim como de comunicação, afetos, e projetos de vida, entre muitas outras coisas. A orientação sexual não se reduz ao mero prazer epidérmico. Portanto, dizer que essa orientação não é um bem é referir-se a todo esse modo de sentir que tonifica a vida dessa pessoa por dentro. Assim, ainda que seja verdade que se podem fazer distinções entre a condição e a expressão sexual, a separação que faz o Magistério entre “aceito-te como pessoa”, “mas a tua homossexualidade é um mal” e “todos os teus atos homossexuais são pecado”, resulta violento para muitos, e creio que com justa razão. No fundo, aí não deixa de haver aceitação.

Por outro lado, o não reconhecimento da homossexualidade como um bem opõe-se a uma certa Ética do dom ao desconhecer o seu caráter recebido. É como se não se terminasse de compreender que a orientação sexual é dessas coisas na vida que simplesmente se recebem. A partir de uma certa cosmovisão, a sua origem será o acaso ou a “natureza”. A partir da cosmovisão cristã, a sua origem é Deus, porque “Ele assim o quis” ou porque “Ele o convida a acolhê-lo como um dom”. Este último recebeu um apoio importante quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a retirou da lista de doenças em 1990. Mas, ainda que não o tivesse feito, não é o próprio Jesus na sua práxis evangélica O que convida a se relacionar com o “recebido” de uma forma carinhosa e amável? Não é verdade que, como assinala São Paulo, estamos convidados a “gloriar-nos” na nossa fraqueza? (2 Co 12, 5). Não é mais relevante que se perguntasse pela “origem disto”, sempre misterioso, o pensar como isto pode ser “ocasião para que a glória de Deus atue” (Jn 9, 3)?

Em qualquer caso, o amor-próprio da pessoa homossexual passa também por estimar e celebrar esse modo de sentir. Não haverá aceitação de si mesmo como um dom se não reconhece que a sua orientação sexual também o é. Trata-se de algo muito medular para a grande maioria. Por isso, se explica que parte do movimento da pessoa homossexual seja a reivindicação do “orgulho de o ser”. O “sou homossexual”, passa a ser o “sou gay”. A palavra é um anglicismo, em inglês “alegre”, e referia-se primeiramente ao modo de viver “alegre” dos que exerciam a prostituição masculina. Mais tarde, a palavra foi adaptada como acrônimo de “Good As You” (bom como você). As duas interpretações fazem referência a uma reivindicação pública da “alegria” ou “orgulho” de ser homossexual que, por sua vez, se transforma numa missão de transformação cultural para que se passe da homofobia à valorização da diferença e a aceitação agradecida do que a vida ou Deus dão.

Agora, pode ser amável um “modo de sentir”, uma certa gama de desejos, e não a sua realização? Hipoteticamente, sim: quando esses desejos terminam produzindo dano. Mas será o caso? A OMS já tem a certeza que não. Mas pelo contrário, são os próprios gays os que experimentaram que em muitos casos, a vida vivida em casal, em particular, “com esta pessoa concreta”, foi um presente, um dom de Deus, uma expressão do cuidado, da predileção, de que “a minha vida é importante para Ele”, de que “sou alguém querido”, e ocasião para expressar que “a minha” homossexualidade pode fazer feliz outra pessoa e ser expressão de traços do amor de Deus. Esta é a crença de muitos. Ninguém lhes pode tirar a convicção de que “esta pessoa”, “esta relação”, “estes anos”, são algo a celebrar, a agradecer, são coisas das quais se está feliz, e do qual querem partilhar.

Esta consciência pessoal de que esta é uma experiência amorosa que “me” dignificou, fez feliz e fez feliz a outros contrasta dramaticamente com a consciência do Magistério de que isto é uma desordem objetiva, que aí não há amor, que isto não faz parte do plano de Deus. Aí não há margem para discussão. O que para uns fez parte da sua história de salvação, para outros faz parte da sua desumanização. Que gratificação? Por mais “formada” que esteja a consciência, por mais que se diga que esta não deve atuar “autonomamente” e deve obedecer à Verdade, esta Verdade mostra-me num lugar distinto daquele que assinala o Magistério. Atuar dignamente, é atuar de acordo com essa consciência (Gaudium et Spes n° 17).

Agora, é verdade que a convicção pessoal pede confirmação na comunidade. Esta também julga-reconhece se aí há amor. Para isso, pode considerar no seu exame a “natureza do ato sexual”, mas deve-se ter cuidado para que essa compreensão seja tão estreita que acabe excluindo do bondoso realidades completas da vida. Se se considera que são requisitos essenciais de “todo” o ato sexual a abertura à transmissão da vida e, portanto, a complementaridade genital, evidentemente não há espaço para o ato homossexual. Mas se consideramos o ato sexual dentro de um projeto de fecundidade que não se reduz à procriação, e consideramos a complementaridade num sentido mais integral, abrem-se as portas para o reconhecimento da sua bondade. Desnaturaliza isto o ato sexual? Creio que não. Sobre a fecundidade-não procriativa, o Magistério não valoriza o ato sexual fora dos períodos naturais de fertilidade? Não valoriza positivamente também ato sexual de duas pessoas que já por idade ou por distintas disposições não podem procriar? É verdade que ainda que uma das finalidades cruciais do ato sexual seja a procriação, a sexualidade humana pelo seu forte sentido simbólico vai muito além disso. Quanto à complementaridade, é requisito uma complementaridade genital? E que é que acontece com pessoas que por invalidez não podem já gerar essa complementaridade? Por acaso elas não podem também manifestar afeto recorrendo ao amor erótico nas suas distintas formas?

Alguns dirão, além disso, que o ato sexual supõe uma certa estabilidade e que o mesmo exige o matrimônio como um projeto de união definitiva. Bom, a abertura à bondade destas uniões situa-nos também na procura das melhores formas de as apoiar.

Em todo o caso, o julgamento da comunidade eclesial não pode considerar só uma certa compreensão da “natureza” das coisas, mas também a narração e o testemunho das pessoas. Não se trata de justificar moralmente uma ação porque simplesmente a pessoa que a realize creia como boa, mas também não se pode fazer um juízo moral sem as escutar. E a experiência de muitas comunidades eclesiais e de muitas famílias é a de ver como, as pessoas homossexuais que fizeram caminho como casal, não somente dizem sentir-se queridos e crescendo, mas também se vêem assim! Vêem-se como se tivessem encontrado um tesouro nas suas vidas que celebram. Normalmente, além disso, esse sentirem-se amados, como todos, lança-os para uma maior generosidade e procura de partilhar o que gratuitamente estão recebendo. Não é incomum que a partir daí também desejem lutar pelos direitos de outros e arriscar a vida e a reputação nisso. Não são estes sinais próprios de que aqui há amor? É óbvio, mas vale a pena dizê-lo, que nem “toda” a união homossexual o será. Do mesmo modo que nas uniões heterossexuais também podem primar nelas relações de poder ou de mero intercâmbio egoísta que desumanizam a sexualidade. A questão aqui é abrir-se a que há (muitas) uniões em que sim há amor.

É realista pensar num reconhecimento do Magistério do amor homossexual? Vejo três dificuldades grandes para que isto se dê, pelo menos nos próximos anos. Significa por um lado refazer o caminho traçado nos últimos anos na matéria, incluindo um situar-se num paradigma da fundamentação da moral distinto do utilizado na questão sexual. Isto não é impossível, mas trata-se de um processo lento que requer também uma renovada visão do valor da tradição onde caiba a evolução. A Verdade foi-nos revelada, mas continuamos na sua busca. Por outro lado, suporia provavelmente uma tensão importante, uma rutura com parte da comunidade eclesial que resistirá a este reconhecimento. Aqui creio que se requer também uma renovada visão do papel do Magistério e do tipo de juízos que este devesse esgrimir pensando na Igreja universal. Por último, supõe uma transformação interior da Hierarquia, que também é lenta. Esta procede de todas as zonas do mundo. Algumas delas onde ainda se discute se a homossexualidade é um delito. Isto condiciona muitos julgamentos e os processos não só são lentos como são muito diversos.

Assim, o que muitos esperamos que aconteça no Magistério é que pelo menos se inicie um caminho com novas afirmações. Requerem-se “novas palavras”, ainda que sejam insuficientes e a dúvida persista. Palavras que reflitam numa mudança de atitude e uma mudança no modo de abordar a questão. Entretanto, as comunidades cristãs que experimentaram o presente da vida de homossexuais continuarão dando testemunho da presença do amor entre eles.

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